Devo confessar que um dos meus escritores portugueses preferidos é o lúcido Miguel Esteves Cardoso. Adoro as suas crónicas antigas (Jonais Expresso e independente, Revista Kappa) pois são bem humoradas e divertidas...
Retrata tão bem os sentimentos e episódios da vida portuguesa que a maior parte das pessoas da Bubble Generation (todas de 70, ou quase...) se identificam com a sua escrita. Adorei todos "Os meus problemas", não gostei de "O amor é fodido" mas também não me foi indiferente, vibrei com "O elogio ao Amor" e tenho a sensação que o prefácio de "A Causa das Coisas" podia ter sido escrito para mim.
Dificilmente poderia esquecer os fenómenos SPAC e POC (pôr os cornos)... São de rir! Até porque, ao contrário do que a Verdadeira Bolha poderia supor, são escritos por um homem. Aqui fica o Fenómeno SPAC.
"A amizade, entre um homem e uma mulher é (o leitor que escolha) um bico de obra; uma coisa muito linda; ainda mais complicado que o amor; absolutamente impossível; amizade da parte da mulher e amizade da parte do homem; só possível se a mulher for forte e feia; impossível se o homem for minimamente atraente; receita certa para a desgraça; prelúdio certo para o romance; indescritível; inenarrável; o que deus quiser ; o diabo.
O leitor que não tenha escolhido todas as hipóteses não percebe nada disto. Quanto á leitora, o mais provável é ter ficado a pensar «só», já que as mulheres portuguesas, por dura experiência, percebem mais certas coisas que os homens. Em Portugal, a amizade entre pessoas de sexos opostos (ou sexualidades opostas) é sempre muito problemática, dada a chamada «cultura vigente». Esta cultura é denominada pelo conhecido Factor SPAC (que significa, em repreensível português, «Salto para a Cueca» estásempre presente. É a mulher que repara que o seu grande amigo está disposto a discutir todos os problemas deça com a maior paciência e compreensão, mas que começa a arroxar e a esverdear, a puxar o lustro á cadeira com o rabo, sempre que ela lhe revela estar muito feliz com um novo amor. Ou (pior ainda) com um velho. Se o amigalhaço suporta a miséria mais camiliana com uma sorriso, mas não aguenta a mínima menção de alegria, se ajuda muito nos dissabores e desamores mas empata ainda mais nos sabores e amores, levanta-se no espírito da mulher, legitimamente ou não, o factor SPAC. E ela interroga-se: «Se calhar este também me quer saltar para a Cueca, ou como eu preferiro para a Espinha?» E se calhar quer. Se isto é ou não um crime, é o que se vai ver.
O problema não é exclusivo das mulheres. Também os homens podem atribuir a certos comportamentos femininos uma medida do factor SPAC (sobretudo o tipo de homem que pensa em Cathrine Spaak, a esquecível actriz de cinema, antes de pensar em Paul-Henri Spaak, o memorável espírito impulsionador da CEE). O homem português tende a distinguir mais claramente entre Amigos e Amigas. Os amigos são para copos e conversas escandalosas de bola e de «boas». E são também, nos casos extremos, para Sempre. As amigas são para as chávenas de chá e conversas profundas sobre a natureza do Inverno, ou dos signos do Zodíaco. Isto sem falar nos típicos carameis para quem as «amigas» são todas as pessoas do sexo oposto com número de telefone, olhos bonitos e uma possibilidade mínima de 1% na tabela SPAC.
A amizade entre homens e mulheres pode chamar-se isenta de factor SPAC quando se fala livremente, como os amigos falam , de terceiros amores. Se uma rapariga se sente à vontade para chegar ao pé de uma rapaz e dizer «Ó pá! Sabes o que me aconteceu? Apaixonei-me! Não é porreiro?», se o rapaz acha que sim, que é bastante porreiro, então pode dizer-se que o factor SPAC está de ferias. Claro que haverá sempre alguns ligeiros ciúmes (afinal já não posso ir contigo á festa – vou com a Gisela ao concerto, desculpa lá»). Mas nada que ponha em perigo a amizade.
Uma das maneiras tradicionais de atenuar o factor SPAC é S mesmo PAC. «Pronto, agora que já estamos despachados neste departamento, - diz a mulher para o homem, atirando-lhe o maço de cigarros [está bem, pronto, de SGPack], - vamos lá a ver se ficamos amigos».Os ex-amantes, depois do grande holocausto, podem dar bons amigos (desde que não tenham amado de mais e dado cabo dos dois coraçõezinhos logo à partida). No cenário pós-SPAC (reza a teoria do Cácárácá conforme se expõe nos cafés do Porto e Lisboa), a curiosidade sexual é imediatamente saciada e a amizade pode florescer, desimpedida de ervas daninhas do desejo. E caso o salto seja em altura, homem e mulher, presumivelmente, decidem continuar, amantes. Esta teoria (do Machão-Latino, ou «M-L») não presta, porque supõe que o SPAC é uma coisa simples e toda a gente sabe que, na cama, fazer amor é uma coisa, fazer só por fazer é outra. Mas a teoria oposta (da Machona-Lusitana, «M-L»à mesma) também não serve. Imaginando que o factor SPAC nunca existe entre um homem e uma mulher que sejam verdadeiros amigos, caem no simplismo contrário. Tal como o homem pensa «Que chatice! Isto nunca mais passa da amizade para o que interessa!», a mulher pergunta «Será que ele é mesmo meu amigo ou estará só a fazer-se ao piso?» está a cometer o mesmo erro. É como perguntar acerca de um pastel de nata se é mesmo feito de farinha ou só de nata. Portugal não é só Lisboa, mas Lisboa também é Portugal (e não é pouco).
Se fosse como os M-L machos e fêmeas diziam, então os homens só podiam ter amigas, então os homens só podiam ter amigas muito feias (o que é limitativo) e as mulheres só podiam ter amigos muito desinteressados (o que seria muito desinteressante). A própria ideia de uma amizade «inocente» põe a hipótese de uma amizade «culpada». Ora ninguém pode ter culpa de ser amigo de outra pessoa. A verdade é outra. Como as mulheres são diferentes dos homens (por exemplo, os segundos sentem-se mais obrigados a tentar SPAC das primeiras do que as primeiras PAC dos segundos), é natural que essa diferença se fala sentir nas relações de amizade. Quando não existe a mínima atracção de parte a parte, tudo bem. Mas quando existe, também não é mau. Aliás, se houver uma gestão elegante dos vários frissons envolvidos, pode até ser melhor.
Vejamos. Em geral, as mulheres portuguesas gostam mais de ter amigos do que ter amigas. O problema é que os homens também. Isto leva a um desequilíbrio considerável na oferta e na procura de amizades. Posto de maneira brutal, não faltam mulheres dispostas a serem amigas de homens. Os homens é que faltam mais. E aproveitam-se disso.
Por outro lado, as mulheres, regra geral, tornam-se amigas dos homens pondo a raridade e o valor da amizade acima da maior vulgaridade do SPAC. Tanto mais que o homem português não põe facilmente a hipótese de uma mulher se tornar amiga dele para lhe SPAC. O raciocínio típico Homo Lusitanus é simples: «Oh se ela me quisesse SPAC escusava de estar com tanto trabalho!» Em Portugal é assim. O homem acha que, no que toca a SPAC, é ele quem tem de trabalhar.
E a mulher também conseguiu convencer o homem que é isso que ela acha também. Logo, o trabalho de amizade de uma mulher nunca é levado a mal pelo homem (é levado por outras mulheres; mas essa é outra história). Em contrapartida, o trabalho do homem é sempre posto em causa. E muito bem posto, aliás. Se ele propõe «talvez fosse melhor ficar por aqui não ouviste o boletim metrológico?», ela faz muito bem em pensar «Está bem, filho já vais ver a imagem do satélite…». MAS faz mal em duvidar da amizade dele sopor causa disso. A verdade é que o amigo talvez gostasse de lhe SPAC, não lhe cairia mal, não senhor, mas pronto, se não puder ser ninguém morre por causa disso, ficamos amigos á mesma. Seja por natureza, seja por formação, o homem tem sempre de manter presente a possibilidade de SPAC da mulher. Pode ser de maneira Roskoff (tentando abertamente) ou pode ser de maneira Rachmaninoff (pensando, pianinho, na eventualidade de ficara em só os dois numa ilha deserta depois de uma bomba atómica ter destruído toda a humanidade), mas lá ter de ser, tem.
Resumindo: para as mulheres, como amigas de homens, é «amizade, amizade, amores à parte», enquanto», enquanto para os homens é mais «amizade, amizade, e uns amores à parte, se puder ser, se faz favor, senão também não faz mal.» Na verdade, a amizade e o factor SPAC não são mutuamente exclusivos. Pode ser-se muítissimo amigo de alguém que se deseje muito, pouco, muito pouco ou nada. O factor SPAC tem o mesmo peso na amizade que o MAX Factor no amor. Nem mais."
Miguel Esteves Cardoso - “Os Meus Problemas”"
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